Flamengo bicampeão da Supercopa do Brasil: quando Diego Alves lembrou Marcial

por | abr 27, 2021 | Especiais, Prateleira

Flamengo bicampeão da Supercopa do Brasil. Mais um capítulo incrível que esse time vem escrevendo na história do clube desde 2019.

Em homenagem ao Dia do Goleiro, comemorado em 26 de abril, relembro o feito de Diego Alves, protagonista do título contra o Palmeiras, em Brasília. 

Se Nelson Rodrigues estivesse entre nós, o goleiro rubro-negro certamente teria uma crônica dedicada à sua atuação – da mesma forma que teve Marcial, que jogou no Fla nos anos sessenta.

Puxei um dos meus títulos preferidos da minha Estante Rubro-Negra para mostrar o por que dessa associação entre camisas um de épocas tão distintas.

Diego Alves e Marcial 

É verdade que o Mengão até flertou com a perda do título da Supercopa. Falhas infantis na defesa, a falta de definição em chances claras de gol. Era para ter sido um jogo mais controlado, definido nos 90 minutos. Não foi – e o título precisou ser decidido nos pênaltis.

Acho que uma decisão assim é um momento único para o goleiro. Se pensarmos bem, a responsa das cobranças é bem maior para os batedores. O goleiro fica ali, tenta fazer sua parte, mas com uma certa “leveza” que quase o exime do que vier a acontecer.

Mas isso não acontece com Diego Alves. Contratado em 2017, já chegou com moral na Magnética (dá até para dizer que foi indicado pela torcida, tamanho o clamor rubro-negro nas redes sociais para que ele viesse). 

 Ter um goleiro conhecido e reconhecido por ser pegador de pênaltis era o remédio perfeito para nos curar da TPM (trauma pós-Muralha).

E isso fez ainda mais sentido na decisão da Supercopa do Brasil. O Flamengo perdeu dois dos três primeiros pênaltis que cobrou. Mas a gente tem Diego Alves no gol e ele é sempre uma esperança quando falamos de penalidades. 

A “virada” veio. Claro que ela só foi possível graças aos pés dos cobradores também. Mas, acima de tudo, ela veio mesmo pelas mãos de Alves. Quando o jogo acabou, eu só conseguia pensar em Marcial.

Diego Alves e Marcial: heróis da camisa 1 rubro-negra

Protagonista do Flamengo no bicampeonato da Supercopa do Brasil, Diego Alves relembrou Marcial na final do Estadual de 1963.

Goleiro do Flamengo de 1963 a 1965, Marcial foi personagem de duas crônicas de Nelson Rodrigues.

Os dois textos estão presentes na coletânea “Fla-Flu: e as multidões despertaram”, que reúne não só textos dos irmãos Rodrigues (Nelson e Mario Filho).

A primeira das duas crônicas está na página 124 e leva o nome de “Continuo tricolor”. Nela, o dramaturgo fala do desempenho memorável de Marcial no Fla-Flu que decidiu o estadual de 1963. O goleiro foi considerado decisivo para o título do Fla.

Logo adiante, na página 127 do mesmo livro, temos a outra crônica dedicada ao arqueiro. Com o nome de “Marcial”, dessa vez o genial cronista fala sobre uma atuação ruim do goleiro rubro-negro em um outro Fla-Flu e de como os torcedores esqueceram, rapidamente, os momentos em que ele tinha sido decisivo.

Em defesa do jogador, Nelson crava que Marcial podia dizer, de fronte erguida, que “deu um título ao Flamengo”.

Diego Alves também pode. Pode berrar para quem quiser ouvir. Pode, inclusive, visitar o Museu do Flamengo, apontar para a Taça da Supercopa 2021 e dizer: “essa está aí graças a mim”. É um “novo Marcial”. Se o Flamengo é bicampeão da Supercopa do Brasil, é por causa dele. 

Em homenagem ao Dia do Goleiro, reproduzo aqui as duas crônicas do eterno Nelson Rodrigues, lamentando que ele não esteja aqui para registrar os feitos desse Flamengo histórico como nenhum outro saberia fazer.

Continuo Tricolor – Nelson Rodrigues

Amigos, ao terminar o grande Fla-Flu, o profeta tratou de catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um vencido? Jamais. Vencido, como, se temos de admitir esta verdade límpida e clara – o Fluminense jogou mais. Não cabe, contra a evidência da nossa superioridade, nenhum argumento, sofisma ou dúvida. Alguém dirá que o profeta não previa o empate.

Exato. Mas vamos raciocinar. Houve lances, no Fla-Flu, que escapariam à vidência até de um Maomé, até de um Moisés de Cecil B. de Mille. Lembro-me de um momento, em que Marcial estava batido, irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros e quebrados. E que fez Escurinho? Enfiou a bola na caçapa? Consumou o “goal” de cambaxirra?

Simplesmente, Escurinho levantou para Marcial. Deu a bola na bandeja como se fosse a cabeça de São João Batista. E eu diria que nem Joana D’Arc, com suas visões lindas, ou Maomé pendurado no seu camelo, ou o Moisés de Cecil B. de Mille, do alto de suas alpercatas – podia imaginar tamanha ingenuidade. Escurinho teria de chutar rente à grama, ou alto, se quisesse, mas teria de chutar e nunca suspender a bola.

E tem mais. Os profetas de ambos os sexos jamais poderiam contar com a trave. No segundo tempo, Escurinho mandou uma bomba. Nenhum “goal” foi tão merecido. Pois bem: – vem a trave e salva. Além do mais que Maomé, ou que Moisés podia calcular que Solich ia fazer jogo para empate? Dirá o próprio que não foi esta a sua intenção. Mas o fato incontestável é que ele armou o time para o hediondo 0 x 0.

É óbvio que, desde o primeiro minuto, o Fluminense teria de se atirar todo para a frente. Era preciso forçar a decisão, o”goal”, a vitória, já que o empate seria a catástrofe. O tricolor jogou bem e, no entanto, não deu, nunca, a sensação de fome e sede de “goal”. Faltavam uns 15 minutos, e os nossos jogadores ainda tramavam, ainda faziam tico-tico, ainda perdiam tempo com passes curtos, para os lados e para trás. Sim, o Fluminense jogou bem e não cabe preciosismo num último Fla-Flu.

Já contra o Bangu, aconteceu o seguinte: – sempre que Oldair avançava, eis que Solich erguia-se na boca do túnel e fazia um comício. Oldair marcou dois “goals” por desobediência e repito, por indisciplina tática. Ontem, ele estava cá atrás, defendendo um empate que seria a vitória do Flamengo. Vejam que tristeza horrenda: – jogamos bem e errado.

Dizia eu que o profeta estava certo no mérito da questão. O tricolor é o melhor, foi melhor, teve mais time. Mas há, claro, um campeão oficial, que é o Flamengo. E aqui, abro um capítulo para falar da alegria rubro-negra, santa alegria que anda solta pela cidade. Nada é mais bonito do que a euforia da massa flamenga. À saída do estádio, eu vi um crioulão arrancar a camisa diante do meu carro. Seminu, como um São Sebastião, ele dava arrancos medonhos. Do seu lábio, pendia a baba elástica e bovina do campeão.

Mesmo que eu fosse um Drácula, teria de ser tocado por essa alegria que ensopa, que encharca, que inunda a cidade. Eu não sei se o time do Flamengo, como time, mereceu o título. Mas a imensa, a patética, a abnegada torcida rubro-negra merece muito mais. Cabe então a pergunta: – quem será o personagem da semana de um abnegado Fla-Flu tão dramático para nós? Um nome me parece obrigatório: – Marcial. E nessa escolha, está dito tudo. Quando o goleiro é a figura mais importante de um time, sabemos que o adversário jogou melhor. Castilho teve muito menos trabalho. Claro que eu não incluo, entre os méritos de Marcial, o “goal” que Escurinho não fez. Tão pouco falo na bomba que o mesmo Escurinho enfiou na trave. Assim mesmo Marcial andou fazendo intervenções decisivas, catando bolas quase perdidas.

Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que o profeta só pode responder: – “Pior para os fatos!” É só.

Assim como Marcial no Campeonato Estadual de 1963, Diego Alves pode dizer que "deu um título ao Flamengo"

Marcial – Nelson Rodrigues

As nossas esquinas e os nossos cafés continuavam ressoantes do Fla-Flu. Ainda agora, dobrava eu a Rua Tenente Possolo, quando esbarro num crioulão plástico, imenso, folclórico. Era um desses pau d’água ornamentais das nossas ruas. Ao atropelá-lo, ouço o homem balbuciar o amado nome: – “Flamengo, Flamengo”… Vejam vocês que coisa doce! O Flamengo é eterno por isso mesmo, ou seja: – porque até os bêbados caem enrolados na sua legenda.

Mas o que eu queria dizer é o seguinte: – todo mundo ainda fala do Fla-Flu e ainda vive o Fla-Flu. Por exemplo: – vi ontem um confrade rubro-negro esbravejando contra Marcial. Ora, nada mais injusto. Não há grande goleiro sem o grande frango. Amigos, não são os “goals” indefensáveis que dramatizam uma peleja. Não. O que arrepia e traumatiza e arrebata é a bola fácil, e, numa palavra, o frango indiscutível, estarrecedor.

E não só os goleiros. Qualquer jogador, de qualquer posição, é suscetível de um frango esplêndido. Inclusive o juiz. Pode-se dizer que Frederico também “frangueou” e várias vezes. Na hora, porém, do juízo final, a torcida, o povo, o jornal – só pensam em Marcial. Cabe então a pergunta: – será ele tão culpado assim?

Não me parece. eu citaria o caso de Gilmar. Goleiro oficial do nosso “scratch”, bicampeão etc., etc. Pois bem. Para dar tudo de si, para fechar o “goal” – Gilmar tem de papar o seu. Aí está sua grandeza: – o frango não o deprime, e, pelo contrário, o frango o potencializa. Só depois de engolir um muito feio, Gilmar transfigura-se e passa a defender até pensamento.

Outro: – Castilho. Lembro-me de um Vasco x Fluminense em que Altair bateu um lateral para Castilho. Este deixou a bola passar por entre os dedos. Veio um jogador do Vasco e encaçapou. Todavia, ninguém quis descascar a carótida de Castilho para chupá-la como uma laranja. O frango sempre foi considerado um dos direitos intocáveis dos goleiros. E por que só Marcial, entre tantos, entre todos, não pode passar os seus?

Sim, foi ele o grande flagelado do Fla-Flu. Desde o “goal” de Ubiraci, que um locutor (rubro-negro feroz) começou a berrar para Marcial: “Dedique-se à Medicina! Dedique-se à Medicina!” Mesmo quando a bola estava na área tricolor, o estrebuchante “speaker” insistia no estribilho de Edgar Allan Poe: “Dedique-se à Medicina!” E quando Amoroso enfiou o “goal” de empate, o profissional quase esganou o microfone. Uivou como um par de hienas: – “Dedique-se à Medicina! À Medicina”

E pior foi no terceiro “goal”. Marcial ia na bola e parou. Como todo estádio, ele ficou, como um magnetizado, olhando, só. A bola foi pererecando, até que se enfiou no canto. O “speaker” agonizou ao microfone. Com a rouquidão do ódio, bramava: – “Médico! Médico!” Dizia “médico” como quem arremessa um palavrão. Por último, arranjou uma variante. Urrava: – “Clínico! Clínico!” Muitos ouvintes tiveram a impressão auditiva de que era “cínico, cínico”.

Agora, passado o impacto Fla-Flu, eu examino, com mais objetividade, os defeitos e as virtudes de Marcial. Eis o que me pergunto: – merece ele ser xingado de “médico” e de “clínico”? Não, e mil vezes não. Amigos, em futebol só uma coisa é certa: – o torcedor esquece facilmente, como os índios e as crianças. Esse mesmíssimo Marcial, deu o passado campeonato ao Flamengo. Ainda no primeiro tempo do Fla-Flu final, ele rolou na grama como um anjo entornado. No mesmo momento, a bola sobrou para Escurinho. Este faz a pontaria e coloca. Então, viu-se o seguinte: – Marcial ergueu-se na grama, como o talo de um lírio. Era a chamada defesa impossível. E salvou mais dois ou três “goals” certos. Hoje, ele é chamado de “médico”, é chamado de “clínico”. mas pode anunciar, de fronte erguida: – “Eu dei um título ao Flamengo”.