Urubuzada na Academia de Letras
Marcelo Dunlop
Foi uma tarde épica, incrível, memorável na Academia Brasileira de Letras.
Em 5 de novembro, com sessão aberta ao som do hino de Lamartine Babo, na voz do seresteiro Gilberto Alves, a ABL deixou, por um dia, o fardão no cabide e vestiu o Manto Sagrado.
Pela primeira vez em sua história centenária, a ABL abordou o futebol como fenômeno cultural, econômico e por que não, literário.
O ciclo de conferências, que ao longo do mês vem contando a saga dos clubes do Flamengo, Botafogo, Fluminense e Vasco, foi inaugurado com pompas pelo presidente da casa, Merval Pereira, que destacou como o futebol se tornou um engenho bem brasileiro que permite que o porteiro goze o dono da cobertura. Ou que faça um recruta rir com o general.
Foto: Marcelo Dunlop
Nessa histórica terça-feira, Ruy Castro palestrou por 50 minutos sobre a importância social do Clube de Regatas do Flamengo, em aula que está no YouTube, no sítio da Academia. Em contagem regressiva para seus 130 anos de glórias, a serem celebrados em 2025, o Mais Querido do Brasil também viu abertas as comemorações para a efeméride.
Ruy aproveitou e concentrou-se nos primeiros 30 anos do clube. Nas charmosas poltronas do teatro da ABL, urros de “Mengo”, camisas pretas e vermelhas e gritos de gol. Só faltou a “ola”, que um barbado puxou, mas, ufa, foi ignorado solenemente.
Reprodução
No fundo, nada daquilo era de estranhar. Afinal, se existe um mascote, ícone ou figura metafórica que mexe com a intelectualidade tupiniquim desde os anos 1500, ah, pode acreditar – é o nosso urubu. E o que é o urubu se não sinônimo de Flamengo, o bicho-símbolo da torcida rubro-negra?
De Pixinguinha a Drummond, a ave foi homenageada em choro e verso por todos os grandes gênios – faz figuração em “O Ateneu”, “Os sertões”, “Macunaíma”, “Vidas secas” e “Grande sertão: veredas”; sobrevoa o teatro de Nelson Rodrigues e está nos livros campeões de venda de Jorge Amado. Humildão, ainda empresta seu nome e estampa a um celebrado disco do maestro Tom Jobim.
De modo a provar que o urubu é mais amado pelos brasileiros do que o dinossauro por cineastas americanos, a torcida flamenga retribui à gentileza da Academia com 25 das melhores passagens urubófilas, de nossa literatura e cancioneiro.
Curadoria, em boa parte, encetada por mestre Antonio Geraldo da Cunha no seu imprescindível dicionário de tupi (quinze reais no livreiro da praça Cazuza, basta urubuzar o vendedor.)
Ave, uruba!
O urubu em 25 passagens da literatura e da música
“Os parceiros desse caboclo diziam que ele enxergava de dia que nem urubu e de noite, tal qual coruja ou cavalo gazeo.”
“Se o poeta for velho então é filósofo… Ou calvo como um urubu.”
“O urubu voa e voa bonito, enquanto nós somos prisioneiros do chão. Não temos mais que os nossos pesados e dolorosos passos. Quando inventamos voar, após dezenas de tentativas fracassadas, criamos um aparelho construído à imagem e semelhança do urubu. O que é o avião, senão um urubu em transe de aperfeiçoamento?”
“Dous dias depois encontrou-se boiando, já a uma légua de distância, uma canoa sem ninguém que a governasse, mas tripulada por uma multidão de urubus.”
“Até os urubus são belos, no largo círculo dos dias sossegados.”
“Bois mortos, há dias intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem, a bicadas, as peles esturradas…”
“Urubus são uns pássaros pretos, tamanhos como corvos, mas têm o bico mais grosso, e a cabeça, como galinha cucurutada, e as pernas pretas.”
“O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.”
“E mesmo o urubu que ali exerce
Negro tão puro noutras praças
Quando no sertão, usa batina
Negra-fouveiro, pardavasca.”
“Daquele ponto se podia avistar revoando a urubuzada encarregada na limpeza do Matadouro.”
“Tu sabes, praga de urubu…”
“Ele falava no mundo onde os filhos dos pobres não precisassem andar com os urubus no cisqueiro.”
“Moro em um edifício alto. Um dia acordei e tinha um urubu pousado no corrimão da varanda. Me senti como John Wayne baleado no Texas e sobrevoado por um bando deles. Não gosto nem do ator, nem da ave. Vade retro!”
“Sei lá… Urubu pelado não se mete no meio dos coroados.”
“Como se fora derramada taça
Pela terra jazer, ali chamando
O feio grasno do urubu que passa”
“De tão perseguidos, os urubus e seus primos enfrentam sério risco de extinção. Mas os urubus não matam. Apenas nos lembram de nossa condição mortal. O que talvez explique boa parte dessa aversão.”
“Na imensa prisão do céu azul, flutuam distantes as manchas pretas dos urubus.”
“O urubu é pássaro absolutamente mudo, manso, inocente, carnívoro; mas não encerta animal por pequeno que seja, enquanto ele palpita.”
“Quem manda nessa porra é a torcida do Urubu!”
“Quase todo país tem no seu brasão um bicho heráldico – em geral bicho de presa, leão, leopardo ou águia de garra forte ou bico de aço – e, sendo assim, não sei por que tendo as outras nações americanas escolhido para as suas armas a águia, o jacaré, o condor, não tomamos para nós o urubu-rei.”
“O passarinho não é industrial, não é conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho. Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.”
“Quem garantiu a popularidade de Popeye no Brasil foi o caricaturista argentino Lorenzo Molas. Ao criar para ‘O Globo’, em 1936, os símbolos dos times de futebol do Rio, ele fez de Popeye o Flamengo. Popeye usava um uniforme preto com gola vermelha. Molas já o vestiu direto com a camisa do Flamengo, e os dois foram felizes para sempre na forma de bonecos e inúmeros objetos. Até que, em 1969, a torcida soltou um urubu vivo no Maracanã. Naturalmente, logo o adotamos como símbolo do clube, e um urubu desenhado por Henfil aposentou o querido Popeye.”
“E bandadas de urubus apareceram e começaram a contra-dançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar das penas contra o vento…, a contra-dançar, afiados para uma carniça que ainda não havia porém que havia de haver.”
“Urubu Procurador. Urubu Achador. Que sabes do alto o que se esconde no chão da mata virgem e dos muitos perfumes que sobem do mundo. Eterno vigia de um tempo imperecível. Guardião de dois absurdos. Nos vetustos paredões de pedra, esculpidos pela millennia, dorme de perfil um urubu.”
“É, meu compadre. Em festa de pombo, urubu não dança.”